Mark Tansey Monte Sainte Victoire

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A arte de não ser governado e as condições de possibilidade do surgimento da crítica de arte

Em o que é a crítica Michel Foucault coloca que: “Como governar, acredito que esta foi uma das questões fundamentais do que se passou no século XV ou no XVI. Questão fundamental a qual respondeu a multiplicação de todas as artes de governar - arte pedagógica, arte política, arte econômica, se vocês querem - e de todas as instituições de governo, no sentido amplo que tinha a palavra governo nessa época.

“No entanto, essa governamentalização, que me parece tão característica dessas sociedades do Ocidente europeu no século XVI, não pode estar dissociada, parece-me, da questão de "como não ser governado?". Eu não quero dizer com isso que, na governamentalização, seria opor numa sorte de face a face a afirmação contrária, "nós não queremos ser governados, e não queremos ser governados absolutamente". (...)

“Eu quero dizer [diz Michel Foucault] que, nessa grande inquietude em torno da maneira de governar e na pesquisa sobre as maneiras de governar, localiza-se uma questão perpétua que seria: "como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa forma, não para isso, não por eles"; (...)”

(...) [Foucault diz que “proporia então, como uma primeira definição da crítica, esta caracterização geral: a arte de não de tal forma governado.. (...)  Mas eu creio mesmo assim que ela permitiria marcar alguns pontos de ancoragem precisos do que eu tentei apelidar atitude crítica. Pontos de ancoragem históricos, é claro, e que se poderia fixar assim:”

1º. Num período em que o governo dos homens era essencialmente uma prática essencialmente religiosa ligada à autoridade de uma Igreja, ao magistério de uma Escritura, não querer ser governado desta forma, era essencialmente buscar na Escritura uma outra relação (...), não querer ser governado era uma certa maneira de negar, recusar, limitar (digam como quiserem) o magistério eclesiástico, era a volta à Escritura, era o que é autêntico na Escritura, do que foi efetivamente escrito na Escritura, (...) até o que se chega com a questão finalmente mais simples: a Escritura era verdadeira?

2º.. Não querer ser governado, está aí o segundo ponto de ancoragem, não querer ser governado assim, não é não mais querer aceitar essas leis porque elas são injustas, (...)

. E enfim, "não querer ser governado", é claro, não é aceitar como verdade, o que uma autoridade diz ser verdadeiro, ou ao menos não é aceitar isso. E desta vez, a crítica toma seu ponto de ancoragem no problema da certeza em face da autoridade.

“A Bíblia, o direito, a ciência; a escritura, a natureza, a relação a si; o magistério, a lei, a autoridade do dogmatismo. Vê-se como o jogo da governamentalização e da crítica, uma em relação a outra, deram lugar a fenômenos que são capitais na história da cultura ocidental, (...)”.


As condições de possibilidade do surgimento da crítica de arte

As poéticas (sublime e pitoresco) que surgem no Séc. XVIII se devem a convicção de que preceitos estabelecidos racionalmente deveriam, ao mesmo tempo, controlar e dirigir as tendências espontâneas do artista seguindo limites prescritos tanto da realidade externa (natureza/cultura) quanto interior (natureza humana)

Jean Starobinski diz que o público exigia verossimilhança nos quadros e desenhos. Os salões do Louvre oferecem ocasião para julgar, discutir. Vê-se nascer a critica de arte: uma livre apreciação do mérito das obras formuladas por amadores esclarecidos. Até então as academias haviam atribuído a si próprias o direito do juízo artístico (1737).

Denis Diderot transforma a critica num gênero literário. Para ele o critério da verdade era a experiência. Afinal a própria arte está no reino da experiência é por esta que o critico deve se orientar - deduzir no exame das obras aquilo que é seu fundamento comum (a natureza humana).

Nas artes visuais, a mímese é um dos termos que define a arte, juntamente com techné, inspiração, expressão, indicando o horizonte teórico, e enfim, destituindo a validade [da arte]) como conhecimento/ teoria. Para Aristóteles a obra de arte aperfeiçoa a ordem do cosmos, é natural para o home  imitar, representar ou se expressar por metáforas.

A mimese, a imitação se torna um principio inabalável na prática da pintura até muito recentemente. A imitação da natureza une dois conceitos cujo sentido se tornou ininteligível para nós, na medida em que a natureza é hoje, em grande parte, um produto da técnica e que o conceito de arte não pode mais ser compreendido senão por meio do estudo dos textos do passado (GROULIER, p. 9).

De acordo com Jean-François Groulier, o pensamento medieval introduz uma distinção capital que passa a basear a definição de arte, e portanto, da pintura – ou seja: natura naturans ( a obra de Deus) e natura naturata ( a segunda natureza produzida pelo homem a partir da imitação da natureza tal como ela aparece em suas formas visíveis); com a reafirmação do Neoplatonismo o artista se volta para a idéia do Belo, que nada mais é do que manifestação do esplendor do divino (GROULIER, p. 10). Um artista como Leonardo da Vinci embora explorasse a natureza por meio de métodos empíricos e matemáticos, entrevendo um mundo em “vias de secularização” mantendo as referências tríplices: o artista imita a obra de Deus, imita tal como aparece em suas formas visíveis e belas.

Jean-François Groulier diz que a “origem da incompreensão da imitação enquanto conceito estético decorre do fato que os modernos desde o Século XIX só guradaram deste princípio a idéia de uma lei mais ou menos tirânica, a de uma natura naturata” que devia copiar servilmente. “De fato, foi negado um privilégio ao artísta: a faculdade original de criar, uma vez que esta pertence exclusivamente a Deus” (GROULIER, p. 10).

Jean-François Groulier ainda diz que a apropriação de um poder transcendente por alguns artistas e teóricos os fazem recorrer a noções de expressão, de gênio, de obras.

No Século XVIII, não há criador superior ao poder criativo da natureza. Neste sentido, o homem objeto central do conhecimento a partir de então participa “das intenções permanentes da natureza” diz Starobinski. Goethe afirmava que o artista é o agente através do qual a natureza procura produzir suas obras primas. A arte é o meio pelo qual a fugaz beleza natural torna-se forma durável –  ou seja, se torna  natura naturata.

Jean Starobinski diz que neste período a arte é atividade sintetizante guiada pelo pensamento que tornava visível uma realidade abstraída de nossa percepção. Por isso, a obra de arte não deveria ser nem uma replica exata do sensível, nem uma invenção arbitraria. Não se preocupa com a idealidade do seu objeto representado pela preocupação com o ato criador e o poder de construir coisas belas. A verdadeira singularidade reside na consciência do artista. A liberdade do criador deve coincidir com a necessidade universal. A arte é o prolongamento humano de uma fecundidade cósmica, diz Starobinski. Ao gênio é atribuída a responsabilidade de acrescentar o mundo ao mundo habitual. Kant diz “O gênio é a disposição nata do temperamento  através do qual a natureza impõe uma regra a arte” (O artista criador de uma realidade sem precedentes vai reivindicar autonomia aos poucos). Na Alemanha se diz que se passa com facilidade do gênio ao demoníaco (A questão dizia respeito se o fato deste não respeitar regras conduzia sempre à liberdade??). Por isso o conceito de gênio proclamado no século XVIII convive com a colocação de regras. De qualquer modo, o final do século irá renascer o mito de Prometeu, com o que a nele de esforço heróico e de revolta contra as prerrogativas da divindade. O gênio transmite vida àquilo que toca.

Para Goulier, nesse sentido, “a positividade do conceito de imitação consiste em expor negativamente, por meio de múltiplas críticas e polêmicas, os pressupostos que o criaram. Quando Hegel, Fiedler ou atualmente Nelson Goodman, por exemplo, denunciam o caráter nocivo da imitação, eles o fazem em nome da verdade, mas recusando a autoridade da antiga metafísica”. O que significa que a mímese, enquanto princípio fundamental da criação artística, originário da filosofia antiga, é destituída pela própria disciplina que a criou: a filosofia (GROULIER, p. 11).





“O advento da estética e de uma história da arte baseada freqüentemente positivista reforçou a idéia segundo a qual a maioria dos conceitos, dos topoi das antigas teorias da arte” (...) “não passava, no fundo, de construções míticas”. (...) “O primeiro efeito dessa crítica foi o de dissociar radicalmente a arte, concebida como atividade autônoma do mito, transformando no Outro do movimento de emancipação da Modernidade. Um dos argumentos da condenação da tradição – que se tornaria um dos lugares-comuns das teorias modernas – consistiu em dizer que o principio de imitação aristotélico ou a Idéia platônica significaram onstáculos milenatres `averdadeira criatividade do artista. A tradição teria, por assim dizer, desviado e detido os atributos mais acarcaterísticos do criador” (GROULIER, p. 12).

Desde o Século XVIII, a rival da velha teoria da arte é a a estética que vem exercendo uma influência contínua sobre a criação, sobre as concepções artísticas e sobre as categorias de percepção e avaliação das obras. “O sublime, a subjetividade, a autonomia da arte, o sentido são palavras cujo conteúdo, modo de sobrevivência e eficácia dependem, de fato e de direito, do discurso filosófico, mesmo que de um a forma literária. A penetração dessas idéias foi tão intensa e tão difusa que ela se impôs progressivamente contra conceitos fundamentais e os topoi da tradição”. (...) A função da estética desde o Século XVIII, não é mais transmitir normas, topoi ou idéias suscetíveis de incentivar o trabalho do artista. “A estética começou por intervir na ordem do discurso, sem se interessar muito pela transformação do espaço pictórico, participando do movimento de emancipação da Modernidade. Não é um saber, nem uma ciência e sim um modo de rflexão e uma forma de legitimação. É por isso que ela é um acessório providencial para todos os empreendimentos da arte moderna” (GROULIER, p. 14).

O texto comentado acima de Jean-François Groulier confirma aspectos da caracterização da crítica como “a arte de não ser governado” a partir da crítica ou rejeição aos conceitos fundamentais, aos topoi – lugares comuns da tradição e as instituições que representavam sua autoridade.


Topoi: plural de topos _ lugares comuns. Topoi: pontos de vista empregáveis em diversas instâncias com validade geral. Características topoi são apresentadas como universais (para uma comunidade) tem códigos comuns ao enunciador e ao destinatário. São gerais, se aplicam a um grande número de situações, com base em Ducrot.

Referencias
GROULIER,  Jean-François.  Da imitação à expressão In.  A pintura. Vol. 5. Da imitação a expressão. Editora 35, 2004
STAROBINSKI, Jean. A Invenção da Liberdade. São Paulo: EdUNESP. 1994.
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica?


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