Mark Tansey Monte Sainte Victoire

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Hegel e a História da Arte

Hegel e a História da Arte [é o antagonista dos dois primeiros textos deste blog, de autoria de Peter Einseman: blue line txt, e o fim do fim (...)]. Fonte: Revista Gávea nº5, abril 1988, PUCRJ
Autor: Ernest Gombrich – Tradução de Teresa da Costa


“Hegel é para mim, o pai da história da arte. Pelo menos na maneira pela qual eu entendo a historia da arte. Estamos, sem dúvida, acostumadas à idéia de filhos se rebelando contra os seus pais. Se acreditarmos no que dizem os psicólogos, os filhos se rebelam porque querem, e precisam mesmo, romper com a influência toda poderosa da autoridade paterna. Creio ainda que a história da arte deve-se libertar da autoridade de Hegel, mas estou convencido que isto só acontecerá quando se puder compreender a esmagadora influência desse autor.”


Descrevi Hegel como o pai da história da arte. Este papel é geralmente atribuído a Johann Joachim Winckelmann e sua obra Kunstgeschichte des Altertums (História da Arte Antiga) de 1764. Parece-me, entretanto, que Lectures on Aesthetics, 1820-29, de Hegel, pode ser considerado o documento de fundação do estudo moderno da arte, na medida em que contém a primeira tentativa de examinar e de sistematizar o universo total da história da arte, aliás, de todas as artes. O próprio Hegel via Winckelmann como um dos homens que “no campo das artes foi capaz de despertar um novo órgão, de abrir espaço para métodos totalmente novos de encarar a mente humana”. Mas o conceito de Winckelmann da arte era bem diferente do de Hegel. Para ele, a essência da arte está no ideal grego e, assim como seu antecessor Vasari escreveu sobre o renascimento deste ideal artístico, Winckelmann estava envolvido com o desenvolvimento desta arte exemplar em absoluta perfeição. Ao mesmo tempo ele via seu trabalho como um Lehrgebaiide, um tratado teórico com o objetivo de demonstrar, através do exemplo da arte grega, o que era a beleza. Hegel, para simplificar por um instante, incorporou esta teoria ao seu sistema filosófico, mas restringiu o alcance de sua validade. O mérito de ter dado forma clássica à beleza sensual foi sem dúvida para os gregos, mas o classicismo representa apenas uma fase da arte, assim como a história da arte não pode ser maior que a História.
Gostaria de tentar formular brevemente o que Hegel apropriou de Winckelmann e o modo pelo qual ele ampliou o alcance do sistema estático para criar a história da arte tal como a conhecemos nos dias de hoje. Ele encontrou três idéias fundamentais em Winckelmann e as anexou a sua própria estrutura de idéias. A mais importante dentre elas é a firme crença na divina dignidade da arte. Assim como Winckelmann celebra, na verdade, a presença visível do divino no trabalho do Homem, em seu famoso hino à beleza do Apollo de Belvedere, Hegel via em toda arte uma manifestação de valores transcendentais. Este é um ponto de vista conscientemente rejeitado por Platão, mas resgatado pelo neo-platonismo para a vida intelectual européia, pois credita ao artista a habilidade de olhar para a Idéia e revelá-la aos outros. Talvez eu devesse chamar esta fé metafísica na arte de "transcendentalismo estético", ressaltando, entretanto, não confundi-lo com a estética transcendental de Kant. Este transcendentalismo estético, com um toque de neo-platonismo, aparece menos pronunciado em Winckelmann que na filosofia de seu amigo e rival, Anton Raphael Mengs, ainda que o culto à beleza de Winckelmann retire daí sua justificativa.
A segunda idéia fundamental absorvida por Hegel pode ser descrita como "coletivismo histórico". Designo deste modo papel destinado ao coletivo, à nação. Para Winckelmann, a arte grega não é tanto obra de mestres individuais quanto à expressão ou o reflexo do espírito grego, onde o conceito de espírito ainda não contém a implicação metafísica conferida por Hegel. Neste caso, o conceito de espírito encontra-se mais próximo do "Esprit des Nations" de Montesquieu.
Em terceiro lugar, mesmo para Winckelmann esta expressão consumada é o resultado final de um desenvolvimento cuja necessidade intrínseca é inteligível. Os estágios da arte grega, a progressão do estilo levaraI1l ao que Winckelmann chama de "o belo estilo", atravessando a fase do estilo nobre ou austero que conduz inevitavelmente a fazer concessões ao prazer sensual, até o declínio. Neste terceiro aspecto fala-se de "determinismo histórico" _ a explicação de como em toda a sua perfeição a arte grega traz em seu bojo até mesmo as sementes de sua decadência.
Claro está que este determinismo é até certo ponto incompatível com aquilo que Winckelmann sentia ser a sua missão: desafiar alguém a competir com as obras gregas e o retorno à Idade de Ouro. Esta falha na doutrina de Winckelmann era mais evidente para seus contemporâneos, na medida em que estes lutavam para ganhar consciência da identidade independente de sua arte nacional. Penso aqui antes em Herder, mas também em Schiller, cujo ensaio Über Naive und Sentimentalzsche Dzchtung tenta fazer justiça à Idade de Ouro da Grécia Clássica, sem vê-Ia como absoluta.
Afinal, aqueles eram os anos em que este antigo sonho da Idade de Ouro tornou-se inexplicavelmente o assunto do momento. Parecia que a razão humana precisava apenas controlar as rédeas para fazer o sonho tornar-se realidade. Obviamente estou falando da Revolução Francesa, que Hegel via também como um evento virtualmente cósmico: "Pois enquanto o sol brilhava no firmamento e os planetas giravam em torno deste, não se viu o Homem firmar-se em sua cabeça, em seus pensamentos, e construir uma realidade em acordo ...Todos os seres pensantes celebraram esta era ... um entusiasmo do espírito encheu o mundo de admiração, como se o divino tivesse finalmente chegado a uma verdadeira reconciliação com o mundo", diz ele em Philosophy of History. (p. 529) .
Estou certo que a filosofia de Hegel, que eu chamaria de "otimismo metafísico”, só pode ser realmente compreendida em relação a este evento. Como alguns de seus contemporâneos, ele via os desenvolvimentos anteriores ao triunfo da razão do ponto de vista de um evento climático. Mesmo nos estágios da evolução natural, da matéria inanimada passando pelas plantas e pelo reino animal até o Homem, ele encontrou a confirmação de que o processo histórico foi, em sua totalidade, um desenvolvi- mento necessário que levou à evolução do espírito de auto-conhecimento.
Dentre outras idéias, Hegel certamente adotou a crença de que a arte detém um papel importante no processo cósmico de seu amigo de infância, Schelling. As três passagens sobre a religião da arte contidas na difícil obra inicial de Hegel, The Phenomenology (1806), encontram-se embutidas em termos tão abstratos, que a verdadeira história da arte não está em jogo ali. Entretanto, me parece que as três idéias fundamentais de Winckelmann estão presentes sob as abstrações, tanto em The Phenomenology quanto na obra seguinte, Encyclopaedia (1817). Nesta, a arte também é essencialmente teofania, ato de desvelar o divino, ligada ao coletivo histórico. Nas palavras de Hegel, "a obra de arte só pode ser uma expressão de Deus se ...tira e extrai ...sem adulteração ...o espírito habitante da nação". (Encyclopaedia, p. 462)
Portanto, assim como o transcendentalismo estético e o coletivismo são elevados ao status de princípios dinâmicos, a lógica do desenvolvimento em Winckelmann é elevada ao determinismo lógico. Porque a arte também toma parte na auto-criação do espírito, que acontece com a força constrangedora de um silogismo. Da mesma: forma que na história da arte, trata-se de "revelar a verdade ... que está manifesta na história do mundo".
O otimismo metafísico proclamado nestas palavras traz agora consigo um outro princípio não menos fundamental à concepção de Hegel da história da arte e à interpretação dos demais acontecimentos da história. Refiro-me ao princípio do "relativismo", um resultado da dialética na obra hegeliana. No que concerne à história da arte, este relativismo dialético, por si relativo, só se torna importante em Lecture on Aesthetics.
Estas quatro palestras feitas por Hegel em Berlim chegaram ao nosso conhecimento através da reorganização de seu aluno, Hotho, para a qual usou os rascunhos de Hegel e anotações que os estudantes fizeram. Talvez, por esta razão, não se deva considerar cada palavra, mas o todo que configura indiscutível autenticidade. Como outros trabalhos de Hegel, estas palestras não são de fácil leitura. A apresentação abstrata, que não preciso exemplificar, torna-se, com freqüência, obscura. Mas quando o leitor está prestes a perder a paciência, às vezes é acalmado por uma passagem que parece estar enraizada na experiência viva.
Hegel tinha uma sensibilidade genuína para a pintura e, incidentalmente, também para a música. Mas seu conhecimento da verdadeira história da arte era tão escasso que ele se deixou lograr pela crença de que o túmulo do conde Engelbert II von Nassau, em Breda, era obra de Michelangelo. Contudo, Hegel tinha clara noção do que ele chamava de as exigências da erudição, "a exata familiaridade com o amplo domínio da obra de arte individual, antiga ou moderna". Segundo ele, a erudição em termos de arte demanda ainda "uma vasta riqueza do histórico e também conhecimento minucioso. Na medida em que a individualidade da obra de arte relaciona-se com algo individual, exige conhecimento detalhado se é para ser entendida e explicada". Ele fala com gratidão da atividade dos especialistas, sem deixar de ressaltar que estes, ocasionalmente, limitam seu conhecimento da obra de arte aos aspectos puramente externos, "tendo pouca noção" da verdadeira natureza da obra de arte ..."sem saber o valor de estudos mais profundos, eles os desprezam". (A I 56) Para Hegel, estes estudos mais profundos eram o que importava. Ele tinha como objetivo provar a validade do que para ele era a crença essencial e reconfortante na razão universal, mostrando como a história da arte podia ser percebida em termos daqueles princípios firmemente estabelecidos e que determinavam todos os acontecimentos na sua filosofia. Mesmo onde um empreendimento como este parece mal orientado, o leitor não pode deixar de ser afetado pela consistência com que Hegel dedica-se a extrair o significado atribuído a cada forma de arte, a cada época, a cada estilo. Esta mesma consistência foi necessária para ajudar a enfatizar o cerne de sua doutrina, a chamada dialética que estabeleceu com firmeza o otimismo meta físico no relativismo.
Esta relação pode ser melhor explicada se nos referirmos mais uma vez ao classicismo da antiguidade, que para Hegel culminou na escultura grega, já que, como forma de arte, a escultura coloca-se em algum ponto entre a arquitetura, esta inextricavelmente ligada à matéria, e a pintura, que representa o mais avançado processo da espiritualização, cujo verdadeiro tema é a luz -um pensamento que talvez origine- se em Herder.
Para Hegel, mesmo a pintura representa apenas uma fase a ser ultrapassada antes de chegar à música, uma forma de arte quase completamente desmaterializada. Por sua vez, a música deve ceder espaço à poesia, que lida com significado puro. O valor de todas as artes, entretanto, é mais uma vez relativo, porque "a arte está longe de ser a expressão mais avançada do espírito"; é dissolvida na reflexão e substituída por pensamento puro, pela filosofia. Como resultado disto, a arte pertence ao passado.
Assim, para Hegel, a arte da antiguidade, tal como vista por J. J. Winckelmann, constitui com certeza o pivô da verdadeira história da arte, mas sua perfeição só foi possível durante uma fase de tempo espiritual limitado, tanto quanto foi possível representar os deuses como seres visíveis. O que precede a arte da antiguidade é uma fase de menor consistência: a arte oriental. Hegel a chama de pré-arte (Yórkunst) e, seguindo o neo-platônico Creuzer, atribui a esta uma forma particular de simbolismo ainda não adequada ao espírito.4 Hegel teve a sorte, ou o azar, de escrever sobre a arte do Egito Antigo pouco antes de os hieróglifos serem decifrados e, portanto, antes que a imagem da civilização egípcia fosse radicalmente alterada. Para Hegel, o Egito "era a terra do símbolo e encarrega-se da tarefa espiritual de auto-decifração do espírito, sem, na verdade, alcançar seu objetivo. Os problemas permanecem não resolvidos e a solução que podemos dar consiste então em mera interpretação de enigmas da arte egípcia e sua obra simbólica como um problema indecifrado pelos egípcios". Podemos mencionar a esfinge como um símbolo para este significado adequado do espírito egípcio. Ela é, como foi, um símbolo do simbólico mesmo ... são corpos animais em repouso dos quais irrompem corpos humanos, formando assim a parte superior do corpo ...O espírito humano está tentando abrir seu caminho para além da força bruta e do poder animal, sem atingir um retrato perfeito de sua própria liberdade e de sua forma animada."
Assim, um monumento de arte inexplicado torna-se, para Hegel, uma metáfora para o espírito de uma época inteira. E, uma vez firme na opinião de que naquele tempo o espírito, como a esfinge, permanecia acorrentado ao animal, ele afirmou também que "os egípcios construíram seus edifícios religiosos em torres do mesmo modo instintivo que as abelhas fazem os seus alvéolos ... A autoconsciência ainda não atingiu a fruição, ainda não completou-se em si, mas força, busca, conjectura, produz continuamente sem chegar à satisfação absoluta e, portanto, sem descanso".
Não é difícil perceber o quanto esta imagem dramática do espírito em luta deve ao princípio da dialética, porque esta representa essencialmente a negação do ideal clássico que Hegel e Winckelmann viam traduzidas em realidade na arte da Grécia Antiga. Contudo, sem levar em conta a freqüência com que Hegel referia-se a Winckelmann em passagens a este respeito, ele sabia com notável lucidez que os sessenta anos que o separavam de seu mestre transformaram radicalmente a imagem da escultura grega. A descoberta da escultura de Aegena, sobretudo o Partenon, alterou inevitavelmente a ênfase. Hegel foi um dos primeiros a menosprezar de fato o Apollo de Belvedere com uma piada de um jornal inglês que o descrevia como um "janota teatral" e a Laokoon como uma obra tardia, declinando já para o maneirismo. Talvez Hegel não desse muita importância a estas obras. Ele nunca esteve na Itália e buscou razões para explicar "por que a escultura da antiguidade nos deixa de cena forma frios ... sentimo-nos imediatamente em casa com a pintura ...nos quadros vemos algo que funciona e é ativo em nosso interior".
Apollo BelvedereUm ponto crucial na visão de Hegel da história era a idéia de que a escultura pertencia à antiguidade pagã e a pintura, à era cristã, chamada por ele de era romântica. Naturalmente esta sua idéia valia-se de uma coincidência: as estátuas de mármore sobrevivem mais facilmente que as pinturas. Sem dúvida, Hegel sabia que os gregos da antiguidade tinham em relação a pintores como Zeuxis e Apelles a mesma estima que nutriam por seus escultores, e não estava satisfeito com esta interpretação da pintura como uma forma de arte subjetiva, romântica. Mas, já que, como ele diz prudentemente, a essência do panorama grego corresponde mais de peno "ao princípio da escultura do que a qualquer outra arte ...o atraso da pintura em relação à escultura é o que se pode esperar". Seja como for, os esforços de Hegel para examinar cada forma de arte segundo sua habilidade de expressar certos valores espirituais levaram-no a descrever o meio do pintor com clareza raramente igualada, antes ou depois, na história.
Para nós, a noção de "pictorização" liga-se ao nome de Heinrich Wölfflin, que, em seu Principles of Art History, descreveu tão articuladamente o desenvolvimento da escultura à pintura. Devemos lembrar que Hegel também acreditava que o escultural necessariamente precederia o "pictorial". Assim, Hegel fala do elemento plástico-escultural em pintura e coloca os problemas da composição em pintura em uma passagem que quase poderia ter sido escrita por Wölfflin: "0 tipo seguinte de arranjo ainda continua inteiramente arquitetônico, uma justaposição homogênea de figuras, ou uma oposição regular e a conjunção simétrica das figuras entre si, com suas atitudes e movimentos. A forma piramidal do grupo é muito comum neste caso ... Inclusive na Madonna Sistina, este tipo de agrupamento ainda permanece decisivo. Em geral, é reconfortante para os olhos, pois a pirâmide une por seu vértice o que de outro modo seria uma justaposição fragmentária, e dá ao grupo unidade interna". Mas o pintor que, como diz Hegel, usa de todos os meios disponíveis em sua arte, o pintor com "pictorização", ainda encontra mais possibilidades de desenvolvimento. Ao longo da evolução artística que Hegel examina à exaustão, a pintura holandesa do século XVII transforma-se num fim em si.
Valeria a pena reunir uma pequena antologia de passagens onde, cansado de adotar um tom seco, Hegel nos contempla com sua reação espontânea ã pintura. O ruído de trituração de seu moinho conceitual se cala, abrindo espaço para o verdadeiro amor pela obra de arte. Mais uma vez um rápido exemplo será suficiente: "Enquanto a arte clássica dá forma na apresentação de seu ideal apenas ao que é sólido, temos aqui, frente aos nossos olhos, expressões passageiras da Natureza em mutação, uma corrente, uma cachoeira, ondas espumantes do oceano, uma vida tranqüila com flashes casuais de vidros e pratos, etc., a forma externa da realidade espiritual nas situações mais específicas: uma mulher pondo linha na agulha sob a luz, um bando de ladrões congelados em movimento, o aspecto mais momentâneo de um gesto que passa rapidamente, o riso e a gargalhada de um camponês; Ostade, Teniers e Steen são mestres em tudo isto ..."Mas mesmo que o coração e a mente mantenham-se insatisfeitos, uma inspeção mais acurada nos reconcilia com eles. Pois cabe à arte da pintura e ao pintor nos deliciar e transportar. E, se de fato queremos saber o que uma pintura é, devemos olhar para estas pequenas figuras para dizer deste ou daquele mestre: agora ele realmente pode pintar ...
Hegel esteve nos Países Baixos e tomou-se de entusiasmo pela pintura holandesa. Enquanto sua descrição da arte italiana baseia-se em larga escala na obra fundamental de Rumohr, que acabara de ser editada, seus escritos sobre a Holanda esteiam-se inteiramente em sua própria observação. Talvez haja nisto um elemento ideológico. O catolicismo dos Nazarenos perturbou para muitos o prazer da descoberta recente dos chamados pintores "primitivos" italianos. Em contrapartida, na Holanda Hegel pôde desfrutar o triunfo do protestantismo nas e através das pinturas. "Não teria ocorrido a nenhum outro povo, sob outra circunstância qualquer, retratar temas como os que nos confronta a pintura holandesa, como o.conteúdo principal da obra de arte:' Hegel encontra a justificativa para a escolha de temas dos holandeses em "seu senso de liberdade auto-conquistada, através do qual atingiram bem-estar, conforto, integridade, espírito, esplendor e mesmo um orgulho em sua animada vida diária".
Podemos ver nesta glorificação do povo holandês um reflexo da idealização de Winckelmann sobre os gregos. E, assim como para aquele autor, um resultado do sistema hegeliano é que o florescimento de uma forma de arte traz consigo sua dissolução interna. A "cor mágica" da pintura acarreta uma inevitável transição para a música. Hegel também nos surpreende na análise desta forma de arte ao mostrar vivo entusiasmo por Mozart e por Rossini, que contrasta estranhamente com suas tentativas um tanto elaboradas de uma cOnstrução conceitual.
De qualquer forma, uma coisa é certa: em se tratando de Hegel, sua teoria estética das categorias constitui parte integral de seu sistema filosófico porque, como afirma em Aesthetics, "apenas o todo da filosofia pode ser equacionado com o conhecimento do universo como totalidade orgânica em si ... no interior deste mecanismo circular da necessidade científica, cada parte é, por um lado, um círculo girando sobre si mesmo e, por outro, tem conexão necessária e simultânea com outras partes -uma origem da qual deriva e um ponto à frente para onde se dirige, na medida em que engendra com fertilidade um "outro" de si, tomando-o acessível ao conhecimento científico".
Obviamente, há algo de tentador num sistema como este, onde todo fenômeno concebível, natural, espiritual ou histórico tem seu lugar. E exatamente por Hegel ter sido a última pessoa e aquela que construiu com maior consistência um sistema assim, sua filosofia não perdeu o efeito quando a influência da sua metafísica decresceu. Portanto, uma sucessão espiritual não está restrita aos filósofos que endossaram todas as definições de sua Encyclopaedia. Na verdade, sabe-se que Karl Marx, por exemplo, opôs-se à tese de Hegel da primazia do espírito -a antítese da primazia da matéria -para, usando o famoso duplo sentido da dialética, cancelar e manter o sistema (Aufheben). Esta foi à tentativa de maior influência, mas não a única, para secularizar a metafísica hegeliana como tal, sem com isto sacrificar a sinopse de todos os eventos históricos. Em meu livro, In Search of Cultural History, procurei mostrar como os campeões da cultura e da estética dos países de língua alemã deixaram-se enfeitiçar por Hegel. O esforço para "reconstruir" o espírito de época nas artes vai de Carl Schnaase a Jacob Burckhardt, Heinrich Wölfflin, Karl Lamprecht, Alois Riegl, Max Dvorak e Ervin Panofsky. Apesar de minha análise ser curta, não quero e nem posso repeti-Ia aqui. Um aspecto, entretanto, coloco de coração. Não desejo criar uma impressão de desrespeito de minha parte em relação a estes grandes mestres. Nem se pode repetir com freqüência que o melhor tributo a ser prestado a um erudito é levá-lo a sério e reavaliar suas linhas de argumento sempre. Seria o último a exigir que a arte e a história cultural desistissem da busca de relações entre as coisas e se contentassem com catalogação. Se este fosse meu objetivo, não me teria ligado em Hegel. O que me deteve não foi a crença na dificuldade de estabelecer relações entre as coisas mas, paradoxalmente, porque parece muito fácil fazê-las. A estrutura gigantesca da estética de Hegel serve, por si, como prova para esta tese. Apesar de seu virtuosismo evidente, já vimos como ele tentou, em sua explicação sobre a arte egípcia, escorregar do metafórico para o factual. Ou como ele relegou a figura de Apelles aos limites da arte grega para não entrar em choque com sua construção da seqüência histórica das artes.
Mesmo o historiador profissional sucumbe com facilidade à tentação de "corrigir a sorte". Todo retrato histórico é, em definitivo, e deve ser, seletivo. Portanto, é natural confinar-se ao que parece significativo e negligenciar o menos essencial. Meu amigo, Sir Karl Popper, o grande perito em metodologia científica, me fez sensível ao perigo de fascinação por estes cantos de sereia. O verdadeiro cientista não busca confirmação de suas hipóteses, antes fica à espreita de exemplos contraditórios. Uma teoria que não pode conflitar-se com nada não tem conteúdo científico. O perigo da herança hegeliana repousa exatamente na tentação da facilidade de sua aplicação. Afinal, a dialética nos facilita encontrar uma saída para qualquer contradição. Como nos parece que tudo na vida tem uma intercomunicação, todo método de interpretação é facilmente aceito, dependendo, sobretudo, de um ponto de partida plausível. "O artista deve comer", nos diz Lessing, e já que os artistas não podem pintar sem comer, certamente é possível basear um sistema de história da arte com credibilidade nesta necessidade universal.
Estas tentativas de interpretação me fazem lembrar da velha anedota do fazendeiro que vendeu um porco por trezentas coroas e estava confortavelmente sentado num bar com o saco de moedas a sua frente. Esvaziou-o sobre a mesa e passou a contá-las "Um, dois, três." Chegou a 10, a 50, 100 e começou a bocejar: 150, 180, 181. De repente, juntou as moedas e as recolocou no saco. "Que diabos está fazendo?", perguntaram seus companheiros. "Esteve certo até agora, então o resto também estará", respondeu o fazendeiro.
Imagino que eu não seria o primeiro, nem o único historiador da arte que gostaria de repetir a contagem. Ao contrário, já me perguntei diversas vezes se hoje, há quase um século e meio da morte de Hegel, minha polêmica em relação a certas interpretações da história talvez não sejam um caso de lutar contra moinhos de vento. Percebi que não se trata apenas de incriminar moinhos de vento, mas gigantes verdadeiros. Já mencionei os cinco gigantes principais por seus estranhos nomes _ transcendentalismo estético, coletivismo histórico, determinismo histórico, otimismo metafísico e relativismo _ todos relacionados ao gigante Proteus, pois mantêm-se constantes em toda metamorfose.
A idéia da transcendência da arte torna-se transparência na forma secularizada. Apesar de não ser mais a manifestação do espírito da auto-realização, a obra de arte ainda é vista como a expressão do espírito de uma época que, como tal, aparece visível através de sua superfície. O termo "expressão", com sua ambigüidade evasiva, facilita esta transição, permitindo ao historiador desvendar a filosofia de uma era, ou suas condições econômicas, através de uma obra de arte. Os dois métodos têm em comum a conexão com o coletivismo, pois o caminho conduz da obra de arte individual pela via do estilo, que agora pode ser interpretado como um sintoma, uma manifestação de classe, raça, cultura ou idade.
O determinismo assume agora um papel chave explícito, ou pelo menos implícito, neste método. Aí repousa a herança hegeliana: na pretensão de mostrar o estilo gótico como um resultado necessário do feudalismo ou da escolástica, ou que os três fenômenos são meras manifestações do mesmo princípio subjacente. Mas deve-se também reconhecer a existência de ligações diretas e indiretas entre estes fenômenos desiguais. É uma simples questão de localizar o ponto em que o trivial converte-se em absurdo, modificando um pouco uma das expressões favoritas de Hegel. O determinismo histórico encontrou tantos oponentes que a questão parecia estar resolvida, se uma questão fosse passível de resolução, Não é necessário decidir aqui qualquer coisa acerca do problema da causalidade, da validade das leis naturais ou de livre arbítrio para refutar a idéia de que o curso da história segue um desenvolvimento necessário. Desta forma, Manfred Eingen, vencedor do prêmio Nobel de Göttingen, enfatizou recentemente que se pode aceitar a validade das leis da natureza sem que isto seja razão suficiente para concluir sobre o curso irrevogável e predeterminado da história.
Freqüentemente gosto de comparar as influências multifárias que estão por trás da criação artística com a influência do clima sobre a vegetação. Ninguém negará a existência de tal influência. O fato de que a vegetação, por sua vez, afeta o clima pode também recomendar a comparação aos partidários da dialética. As variações climáticas podem inclusive ser conhecidas através da observação dos anéis anuais de uma velha árvore, Ainda assim, este cálculo teria uma validade limitada, uma vez que os efeitos mútuos não se restringem a estes dois fatores apenas. Vários outros fatores, impossíveis de calcular previamente ou de serem reconstruídos, estão em jogo. Vale lembrar a importação casual de um casal de coelhos que quase levou a uma completa devastação da vegetação. Não se pode deixar de lado a realidade dos acasos.
Sei que na segunda edição da Encyclopaedia Hegel explicou a famosa frase tirada de Philosophy of Law, "tudo que é racional (vernunftig) é verdadeiro e tudo que é verdadeiro é racional", para sua compreensão da realidade como "não apenas a mera existência empírica ... mesclada ao acaso, mas a existência que é inseparável do conceito de razão", 7 Porém; esta tentativa de salvação está definitivamente baseada em um argumento circular, pois, se o acaso não tem nada a ver com a filosofia, tampou- co tem com a história. De tempos em tempos, a história confirma o velho provérbio "Kleine Ursachen, grosse Wirkungen" (acontecimentos importantes começam como banalidades) -um dito verdadeiro que bane de uma vez por todas o fantasma do determinismo histórico.
Isto parece tão óbvio que se pode perguntar por que as pessoas resistem a esta percepção. Talvez o poder do acaso fira nossa auto-estima. Falamos de coincidência cega, estúpida ou sem sentido e achamos o azar, tanto na vida quanto na história, mais fácil de lidar se o vemos como o destino inevitável. Seria muito mais fácil se compartilhássemos do otimismo metafísico com o qual Hegel tenta nos convencer de uma vez por todas de que tudo o que acontece é para melhor. O desejo dá origem ao pensamento, em qualquer sentido que a fé num final feliz e predeterminado do jogo cósmico seja formulada. Supõe-se que nem todos os deterministas sejam otimistas também. Oswald Spengler, por exemplo, que tinha tanto em comum com Hegel, profetizou o declínio inevitável do mundo ocidental. Por outro lado, o fator essencial no otimismo metafísico é que não pode, nem deve haver nenhum declínio ou deterioração que não abra caminho para um novo tipo de desenvolvimento.
Acho que não estaria muito errado se descrevesse este relativismo como o dogma oficial, por assim dizer, do ensino contemporâneo de história da arte, na medida em que este se devota ao determinismo. Não se pode condenar o inevitável, mais do que um geólogo poderia condenar a Era Glacial. Por certo, levou algum tempo antes de os historiadores da arte adotarem esta atitude, que vai muito além de Hegel e sua idéia de nivelamento. Segundo Hegel, há um declínio natural mesmo que seja para servir ao progresso. Hoje considera-se científico erradicar o conceito de declínio do vocabulário da história da arte onde for possível, para distribuir cada uma das épocas anterior - mente condenadas em um lugar adequado na cadeia de desenvolvimento. A exigência de reconhecimento legal da arte gótica no século XVIII foi aceita até mesmo por, Hegel. Mais tarde, seguindo os passos de Buckhardt, Wölfflin reintegrou a arte barroca, Wickhoff defendeu a arte romana, Riegl a arte do fim da antiguidade e Max Dvorak, as pinturas das catacumbas e EI Greco. Walter Friedlander libertou completamente a arte maneirista do estigma do declínio e Millard Meiss empreendeu uma avaliação positiva da pintura do fim do trecento. Atualmente, volta-se a respeitar até mesmo o Salão da Pintura Francesa do século XIX, até há pouco considerado a essência do kitsch.
É inegável que aproveitamos muito destes esforços _ abandonamos preconceitos e aprendemos a olhar mais de perto. Sou uma pessoa pacífica e estou preparado para deixar cada um dos cinco gigantes ter seu brinquedo desde que se limite ao território reservado para si. Concederei assim, até mesmo ao otimismo metafísico, a realidade de uma forma de progresso que une a natureza à história. Compreendemos desde Darwin que em casos como este não há necessidade de teleologia; apenas para o cruel mecanismo de eliminação dos não adaptados. Talvez no campo da arte uma mutação casual também leve a uma solução altamente promissora que, por sua vez, conduza a uma seleção ulterior. A história da arte foi apresentada por linhas de desenvolvimento primeiro na Antigüidade, depois no Renascimento e também por Winckelmann. O que naquele tempo foi considerado declínio pode ser interpretado em sentido relativista como um outro processo de adaptação. Mas adaptação a quê? Afinal, nem toda coletividade, nem todo grupo faz demanda idêntica aos artistas e a seus padrões. Em relação a isto, meu prezado Julius von Schlosser insistia em não confundir a verdadeira história da arte com a história dos estilos ou idiomas artísticos. Certamente a história dos estilos serve melhor a tentativas de reconstrução hipotética do que a fenômenos de maestria artística. Até mesmo uma obra de mestre não independe de uma constelação favorável de circunstâncias. Mas, neste sentido, concordo com o transcendentalismo estético -a atividade artística mais elevada ergue-se a esferas que, mesmo em princípio, desafiam a análise científica.
A continuidade de tópicos nos temas levantados por Hegel me parece indiscutível. Mas tornam-se batatas quentes somente quando em ligação com a situação atual da arte. Aqui é necessário voltar à ambigüidade intrínseca da palavra "história", já que esta se insinuou no título desta palestra. Hegel e a História da Arte pode ser compreendido como uma referência às relações do autor com a historiografia da ar- te, como discuti aqui. Mas estas palavras também podem subentender a influência de Hegel no desenvolvimento da própria arte. E esta é, sem dúvida, uma questão de maior peso.
Não podemos jamais esquecer aquilo que a maneira de escrever a história pode produzir no curso futuro dos acontecimentos. E é este tipo de feedback que Hegel provavelmente descreveria como dialético -o que importa para a decisiva influência da filosofia da história. Hegel via na arte mais do que um reflexo do divino. Via também um aspecto do processo contínuo de criação que atravessa o artista. O papel designado na antiguidade clássica ao poeta atribui-se daqui em diante a todo verdadeiro artista. Ele é um vidente, um profeta, não apenas um porta-voz de Deus, mas alguém que O ajuda a alcançar Sua autoconsciência.
Em palestras sobre filosofia da história, Hegel nos coloca _ mais explicitamente do que naquelas onde o tema é a estética -sua concepção do papel histórico desta missão divina. É verdade que suas reflexões sobre o que chamava de "indivíduos históricos mundiais" referem-se de imediato a líderes políticos. Mais que qualquer outro, Hegel tinha em mente Napoleão, que preservou os feitos da Revolução Francesa e superou-a. Numa famosa carta após a batalha de Jena, Hegel o descreveu como "esta alma do mundo". 10 Mas, quando Hegel fala de grandes homens, estamos autorizados a incluir também os artistas. De qualquer forma, estes não se deixariam excluir. Segundo Hegel, é tarefa do que ele chama "estes gerentes de negócios do Espírito do Mundo estar consciente do próximo passo necessário a ser dado pelo mundo. Fazer deste passo seu objetivo e devotar sua energia a isto" ..."Eles representam a espécie seguinte, já pré-figurada internamente como tal." (p. 46)
Obviamente não cabe aos simples mortais reconhecer e compreender esta antecipação do futuro no presente. Portanto, só se pode tirar uma conclusão da filosofia hegeliana: qualquer que seja o objetivo do Espírito do Mundo, deve ser algo de novo. Assim, o velho é depreciado, enquanto que o desconhecido, o não experimentado, pelo menos traz consigo a possibilidade de abrigar as sementes do futuro. Ser rejeitado em sua época torna-se a marca do gênio. Os grandes mestres devem estar à frente do seu tempo, pois se não estivessem não seriam grandes mestres.
Aqueles de nós que não percebem as mudanças de estilo, de tendências e das modas como uma revelação de propósitos mais elevados devem-se perguntar como poderão realmente saber o que o futuro apreciará. De fato, deveríamos até nos perguntar por que supomos que a próxima geração terá necessariamente melhor sabor que a nossa. Mas para quem endossa o otimismo metafísico de Hegel, o processo de seleção passou do presente para o futuro. Apenas o sucesso do futuro conta como válido, como verdadeiro, real, um teste da Vontade Divina. Criticar os acontecimentos contemporâneos torna-se, teoricamente, impossível porque tal crítica sempre incorre no perigo de revelar-se como blasfêmia no futuro. Tudo que resta ao crítico é tentar ver em que direção o vento sopra. Como mostrou Popper, um gigante mais perigoso assoma de trás do otimismo metafísico: o oportunismo metafísico.
Não é meu desejo, nem de Popper, assegurar que a filosofia do progresso na arte, a teoria do avant-garde, tirou inspiração e nutriu-se exclusivamente da filosofia de Hegel. Mas creio ser possível demonstrar a contribuição essencial feita pela tradição hegeliana. Em outra ocasião, chamei atenção para uma observação feita por Heinrich Heine, que derivou esta conseqüência para a crítica de arte da filosofia de Hegel. Heine via Hegel como o maior filósofo alemão desde Leibniz, acima de Kant, e discordou de críticos que no Salão de Paris de 1831- ano da morte de Hegel -censuraram um quadro de Descamps por ser mal feito. Ele insistiu no ponto de que "todo artista original, e sobretudo todo gênio artístico, deve ser julgado por seus próprios padrões estéticos ...Cores e formas ...não são mais que símbolos da Idéia, símbolos que surgem na mente do artista quando tomado pelo sagrado Espírito do Mundo". Heine fala da servidão mística do artista e, em vista desta falta de liberdade, qualquer crítica torna-se pedantismo arrogante.
É verdade que no campo da crítica de arte os críticos levaram muito tem- po para admitir a derrota e para chegar ao que Hegel teria chamado de auto-anulação da crítica de arte. Mas todas as sucessivas ondas de revolução artística do século XIX ocasionaram um soerguimento do relativismo otimista. A crença no progresso polarizou o mundo político e o mundo das artes. Restou o ímpeto do avanço e a inércia dos reacionários. Nesta constelação, a tarefa de criticar não cabia ao crítico, sua missão agora era assistir à boa luta do movimento. O crítico tornou-se o arauto da nova era e fez o melhor para transformar estas profecias em realidade. Vale lembrar com que prazer os manifestos artísticos do início do século XX entregavam-se a uma retórica apocalíptica, anunciando um novo ocaso, uma nova era, uma distribuição. Neste caso, Hegel também proporcionou inspiração direta. Eckart von Sidow escreveu em um panfleto de 1920 sobre German Expressionist Culture and Painting: "podemos dizer, com poucas qualificações, que o Espírito Alemão encontrou contato imediato com a alma do mundo, como nos dias da Idade Média".
Não desejo ser mal compreendido. Esta declaração não fala contra o Expressionismo, mas contra sua escora metafísica no transcendentalismo estético. Admito inclusive que a fé metafísica pode de fato inspirar um artista ou um movimento artístico. Quase toda grande arte é religiosa e o elemento religioso na filosofia de Hegel também tinha seu efeito de inspiração. Creio que o historiador da arte de nosso século tem de estudar Hegel, tanto quanto o estudioso da arte eclesiástica da Idade Média devia conhecer a Bíblia. Somente desta maneira ele poderá, por exemplo, aprender a compreender o surgimento triunfante da moderna arquitetura e sua crise atual.
Vejamos como Walter Gropius escreveu em 1923, em seu artigo The Idea and The Structure of The National Bauhaus: "A atitude de um período torna-se cristalizada para o mundo em suas edificações, pois nestas, tanto os recursos materiais quanto espirituais de uma época encontram sua expressão simultânea". 12 Conhecemos o tipo de expressão com que ele sonhava através do belo discurso feito por ele na abertura da exibição das obras dos estudantes, na Bauhaus: "Em lugar de organizações acadêmicas espalhando-se, assistiremos ao surgimento de pequenas ligas secretas e auto-suficientes, alojamentos, oficinas, associações, com o propósito de guardar o mistério que é a essência da fé, dando-lhe forma artística, até quando estes grupos isolados estarão fundidos mais uma vez por uma envolvente e vigorosa visão espiritual que deve, eventualmente, ativar sua manifestação em um grande Gesamkunstwerk, combinando todas as artes. Esta grande criação comunal, esta catedral do futuro iluminará, por sua vez, com sua radiação até os menores objetos do cotidiano".13
Espero que vocês também sintam o alcance intoxicante destas palavras de um grande arquiteto. Entretanto, uma intoxicação é freqüentemente seguida por uma "ressaca". E, como se sabe, não tivemos que esperá-la por muito tempo. Há poucos meses, Sir John Summerson, um dos mais destacados críticos e historiador da arquitetura da Inglaterra, por ocasião de sua premiação com a Medalha de Ouro do Royal Institute of British Architects, falou sobre s~u começo como um defensor ardoroso da moderna arquitetura na Inglaterra e ressaltou que ele considera o otimismo naive em seus artigos iniciais totalmente repelente.14 Outro proeminente crítico inglês confessou com franqueza, perante o mesmo fórum, que durante a luta pela arquitetura moderna ele algumas vezes elogiou trabalhos que não achava tão bons, pelo simples fato de serem modernos, não reacionários. 15 Estas confissões merecem o maior respeito e, na verdade, hoje em dia devemos receber bem todos os debates que ocorrem, onde quer que a arquitetura seja praticada e ensinada. É através do encontro de argumentos e contra-argumentos que aprendemos com os erros das últimas décadas.
Nas artes visuais -pintura e escultura -a volta ao debate crítico não será tão fácil. Afinal, estas carecem do critério prático ao qual tais obras devem fazer justiça. Neste caso, o crítico é jogado contra si próprio. Naturalmente, não podemos exigir que o crítico não tenha sonhos para o futuro e preconceitos. Mas, em teoria, ele nunca tem o direito de operar com slogans do tipo "Nossa Era", e menos ainda com "Eras Futuras".
Foi lmmanuel Kant quem insistiu na doutrina séria e assustadora de que nada e ninguém pode nos aliviar do peso da responsabilidade moral por nosso julgamento: nem mesmo uma teofania com,o Hegel via na história. Diz ele: "Pois, qualquer que seja a forma pela qual um Ser possa ser descrito como Divino ... e pareça mesmo sê-lo ..:', isto não pode absolver ninguém do dever "de julgar por si se lhe cabe ver este Ser como um Deus e adorá-lo como tal".16 Talvez Kant exija mais que o humanamente possível, e muito seria feito caso a descoberta de que Kant está certo ganhasse espaço no mundo da arte.

Nenhum comentário: