Mark Tansey Monte Sainte Victoire

sábado, 18 de outubro de 2008

Blue Line Text

Blue Line Text
Texto de Peter Einsemam publicado na Revista AU

Freqüentemente se argumenta que os princípios do Modernismo derivaram da filosofia de Hegel. Nessa discussão, os fundamentos desenvolvidos em “Discursos sobre Estética” de Hegel evoluíram para a ruptura modernista em relação à tradição clássica. De particular significado foi o conceito central da dialética metafísica do qual surgiram oposições como forma e função, estrutura e ornamento, figura e abstração. O fato de, em arquitetura, esses termos terem permanecido sem questionamento, livres de análise crítica, indica que o domínio da metafísica da dialética permanece poderosamente inalterado.
Hoje está claro que, apesar da renovação de sua imagem retórica e das intenções radicais de seu programa social, a tão proclamada ruptura do Modernismo foi ilusória: ele sempre deu continuidade à tradição clássica. Apesar de as formas serem realmente diferentes – o modo pelo qual elas ganharam significado ou representaram seu significado real – derivaram da tradição da arquitetura.
Em outras disciplinas, particularmente em Ciência e Filosofia, houve desde meados do século XIX mudanças extraordinárias na forma real, no método para produzir sentido. Hoje a cosmologia que articula as relações entre Homem, Deus e a Natureza se distanciou muito das normas da dialética hegeliana. Nietszche, Freud, Heidegger em mais recentemente, Jacques Derrida, contribuíram para a dramática transformação do pensamento e da conceituação do Homem e de seu universo. Entretanto, muito pouco desse impacto encontrou eco na arquitetura contemporânea, que não questionou criticamente seus próprios fundamentos como a Ciência e a Filosofia. Permaneceu fiel a princípios próprios a essas duas áreas do conhecimento, que foram se tornando insustentáveis devido a seu inerente questionamento interno. Os fundamentos dessas disciplinas mantêm-se hoje essencialmente incertos, sendo possível se perguntar se essa incerteza também não é válida para as bases da arquitetura, onde essa questão nunca foi articulada, nunca teve resposta.
Isso ocorre porque a arquitetura nunca elaborou uma teoria apropriada sobre o Modernismo, compreendido como um conjunto de idéias que lida com as incertezas intrínsecas e com a alienação da condição moderna. A arquitetura sempre acreditou que os fundamentos de seu Modernismo residiam na certeza, na visão utópica da ciência do século XIX e na Filosofia. Atualmente essa visão não pode ser sustentada. Todas as disciplinas especulativas e artísticas – teologia, literatura, pintura, cinema e música – chegaram, de um modo ou de outro, a um acordo em relação a essa desagregação. Cada uma delas redefiniu o mundo a seu próprio modo, de acordo com princípios que podem ser chamados de pós-hegelianos. Assim, o chamado Pós-Modernismo em arquitetura, uma ruidosa nostalgia pela aura perdida do autêntico, do verdadeiro e do original, ignorou essa importante tarefa.
Pode-se constatar que, hoje, o último baluarte de projeto individual está no compromisso com essa aura do autêntico, do verdadeiro e do original. Porém o saldo do Pós-Modernismo em arquitetura foi a produção em massa de objetos que tentam parecer não terem sido produzidos em massa. É dessa forma que o Pós-Modernismo destrói sua essência, sua própria “raison d’être”, tornando-se um veículo de estetização do banal.
A questão que se coloca então é: por que a arquitetura encontra tanta dificuldade em se posicionar no domínio pós-hegeliano? Porque a arquitetura é simplesmente a disciplina que encontra maior dificuldade em se deslocar, a essência de sua atividade é se “locar”. A arquitetura não especula meramente sobre a gravidade, ela opera a favor e contra a gravidade. Por essa razão, sua presença objetiva dentro dos termos da realidade, ela sempre foi obrigada a simbolizar esses preceitos e seu funcionamento, como provedora de abrigo e retiro.
Conseqüentemente, a arquitetura se depara com uma difícil tarefa: deslocar o que ela situa. Esse é seu paradoxo. Devido ao imperativo da presença, da importância do objeto arquitetônico para a experiência do aqui e agora, a arquitetura enfrenta esse paradoxo como nenhuma outra disciplina. Por estar ligada à condição fundamental de abrigo compreendido na sua dimensão física e metafísica, já que ele existe tanto no mundo real quanto no das idéias, a arquitetura opera ao mesmo tempo como condição de presença e de ausência.
Em sua contínua nostalgia pela autenticidade, a arquitetura sempre procurou, sem perceber, reprimir o aspecto interior a si própria e essencial da ausência. A tradição da presença arquitetônica e da objetividade, assim como a representação do Homem e suas origens sempre foram tidas como naturais, o que foi obtido através de uma linguagem formal, tida também como natural.
A coluna e a viga, o arco e as arcadas, o capital e a base, por exemplo, foram todos pensados como naturais à arquitetura. Assim, a nostalgia pós-moderna tentou conduzir a arquitetura a um retorno à sua herança “verdadeira”, “natural”. Mas é possível, atuando em sentido contrário, propor uma arquitetura que inclua as instabilidades e deslocamentos que hoje constituem a verdade, e não um mero sonho de uma verdade perdida.
A idéia de que a arquitetura deve ter a verdade como tradição – representar, além de sua função de abrigo, o bom e o belo – exerce uma repressão primitiva que passa despercebida. De fato, a verdade da instabilidade é que tem sido reprimida. Pois, se a arquitetura é uma convenção, que não é natural, existe então outra verdade passível de ser proposta além da “natural” verdade do objeto clássico. Somente quando se alterar a idéia de uma verdade natural – força de sustentação da repressão causada pelo conceito de “natural” -, a arquitetura participará significativamente do projeto pós-hegeliano.
Essa repressão está também enraizada na persistência da natureza supostamente isenta de julgamento de valor das categorias tipológicas da arquitetura e de sua hierarquia intrínseca. Mas não há equivalência entre estrutura e ornamento: o ornamento é acrescentado à estrutura. Assim como não há equivalência entre figura e razão; a figura é acrescentada ao fundo primordial. Cada um dos termos desses opostos dialéticos tem um valor intrínseco: estrutura é bom, ornamento é ruim. Para a arquitetura entrar na condição pós-hegeliana, ela deve se afastar da rigidez e da estrutura de valor dessas oposições dialéticas. Por exemplo, a oposição tradicional entre estrutura e ornamento, abstração e representação, figura e fundo, forma e função, poderia ser dissolvida. A arquitetura poderia iniciar uma exploração do “entre” nessas categorias.
Tal arquitetura não buscaria mais a separação de categorias, a hierarquia de valores ou os sistemas classificatórios tradicionais de tipologia formal e funcional e sim turvar essas e outras estruturas. A idéia da falta de clareza não é menos precisa, nem menos racional, mas admite o irracional no racional. Hoje podemos identificar essa idéia nas pinturas de David Salle, nas fotografias de Cindy Sherman, onde o nebuloso aparece entre o belo e o feio, o sensual e o intelecto. Exploram simultaneamente o belo no feio e o feio no belo.
O que é o “entre” em arquitetura? Se arquitetura normalmente determina o lugar, então “estar entre” significa estar entre algum e nenhum lugar. Se a arquitetura tradicionalmente se relaciona com “topos” – uma idéia de lugar -, então “estar entre” significa buscar um “atopos”, a atopia dentro do “topos”. Muitas cidades americanas modernas são exemplo de atopia. Ainda assim, os arquitetos querem negar a atopia da existência atual e restabelecer os “topos” do século XVIII, trazer de volta uma condição que não pode mais existir. O que há realmente de valioso na recriação de um vilarejo do século XVIII em Los Angeles ou Houston?
A lição do Modernismo sugere que não há “topos” no futuro. Os novos “topos” devem ser encontrados explorando a inevitável atopia do presente que está não na nostalgia estetizada do banal, mas sim naquilo que existe entre o “topos” e a atopia.
Para que esse processo se concretize, o modo pelo qual o significado é expresso deve ser examinado criticamente. Assim como a teologia, a filosofia e a ciência, a arquitetura deve rever suas verdades, particularmente a tradição da representação.
Desde Aristóteles, a verdade tem condicionado a metáfora, que consiste em relacionar um referencial à verdade. É possível, entretanto, empregar outros tropos retóricos e assim questionar o status da metáfora. Há, de fato, um tropo retórico chamado catacrese que fala do “entre”. A catacrese penetra na verdade e torna possível olhar para aquilo que a verdade reprime. Verdade e metáfora podem ser revistas não através do exame crítico de suas estruturas. Segundo Tafuri, há dois tipos de arquiteto: o mágico e o cirurgião; penetrar na metáfora para revelar a catacrese, penetrar nos “atopos” para revelar um novo “topos”.
Há duas condições de catacrese e atopia no seio da arquitetura: o arabesco e o grotesco. O arabesco está entre a figuração e a abstração, entre a natureza e o homem, entre significado e forma. Tradicionalmente, seu uso tem sido meramente decorativo, mas é possível sugerir a presença da estrutura no arabesco ou, pelo menos, delimitar a condição entre estrutura e ornamentação.
Analogicamente, o grotesco, cujas raízes são relacionadas às do arabesco, pode ser usado para explorar o “entre”. Não é coincidência que se façam alusões aos trabalhos de Sherman e Salle como grotescos. Nos “Contos do Arabesco e do Grotesco”, de Edgar Allan Poe, a casa mal-assombrada é uma imagem central. Isso não quer dizer que devamos literalmente construir casas mal-assombradas, nem romancear a qualidade do assombrado, mas sim que o grotesco talvez esboce um potencial poético, uma possibilidade para a arquitetura do “entre”, hoje.

PETER EISENMAN
Tradução: MARCIA CAMPOS

Existe um sentido figurativo para esse título em inglês. “Blue line” é o nome informal da prova de texto que o impressor manda para o autor ou editor para ser corrigido antes que a versão final seja impressa (a cor da tinta dessa prova é azul, daí o termo “blue line”). Pelo fato de o “blue line” ser uma versão intermediária do texto, produzida depois do primeiro esboço e antes da versão final impressa, ele cumpre a condição do “entre”, referida por Peter Eisenman neste texto.

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