Mark Tansey Monte Sainte Victoire

domingo, 23 de outubro de 2011

É isso um homem? fragmento

"É isto um homem?",publicado em 1947 pelo escritor italianao Primo Levi. 
"Já estamos transformados nos fantasmas que havíamos deslumbrado noite passada. Então pela primeira vez nos demos conta de que nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a destruição de um homem. Em um instante, com intuição quase profética, a realidade nos é revelada: chegamos ao fundo. Mais fundo que isso não se pode chegar: uma condição humana mais miserável não existe tampouco se pode imaginar. Não temos nada nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos e até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão, e caso nos escutassem, não nos entenderiam. Até mesmo o nome nos tiraram: e se quisermos conservá-lo deveremos encontrar dentro uma força arquitetada de tal maneira que, atrás do nome, algo nosso, algo do que um dia fomos, enfim permaneça.
Sabemos que é difícil que alguém consiga entender tudo isso, e até compreensível, mas pense no valor, no significado que há mesmo nos mais pequenos de nossos costumes cotidianos, nos cem objetos nossos que o mais humilde mendigo possui: um trapo que seja, uma carta velha, a foto de uma pessoa querida. Estas coisas são parte de nós, quase que como membros de nosso corpo; e é impensável que nos vejamos privados delas, em nosso mundo, sem que imediatamente encontremos outras que as substituam, outros objetos que nos pertençam, suscitando ser nossas memórias.
Pois imaginem agora um homem a quem, além de suas pessoas amadas, roubem-lhe também a casa, os costumes, as roupas, tudo, literalmente tudo o que possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à necessidade, vazio de dignidade e de juízo, porque àqueles que perderam tudo ocorre que se perdem a si mesmos [...]" (Capítulo "En el fondo").
"Por que tudo isto? Por que a dor de cada dia se traduz em nossos sonhos tão constantemente na cena repetida da narração que ninguém, absolutamente ninguém escuta?

Muitos tremem os lábios e batem as mandíbulas. Sonham que estão comendo: este é também um sonho coletivo. É um sonho impiedoso, quem inventó o mito de Tântalo deveria conhecê-lo. E não apenas podem ver os alimentos, como também o sentem nas mãos de modo concreto, percebem seu gosto rico e violento; e há aqueles que o levam à boca [...]. E então desaparece o sonho e se rompem seus elementos [...].

Assim se arrastam nossas noites. O sonho de Tântalo e o sonho do relato se inserem num tecido de imagens menos claras: o sofrimento, golpes, frio, cansaço, medo e promiscuidade reaparecem pelas noites nos pesadelos informes de uma violência maldita que só se pode ter o homem livre em horrendas noites de febre". (Capítulo "Nuestras noches").
ver tbm: http://aveianopulso.blogspot.com/2006_04_01_archive.html

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